Após a Queda, o homem tornou-se vulnerável; ele e o mundo inteiro tombaram na contingência enquanto tal; a ligação com o Centro divino1 estava rompida, tornava-se invisível; o mundo tornava-se de repente totalmente exterior ao homem, as coisas passando a ser opacas e pesadas, como fragmentos ininteligíveis e hostis.
Ao olharmos para a humanidade depois da queda, notamos claramente que ela está doente; e não é uma doença mental ou física, mas espiritual, do qual deriva da indiferença total à inteligência. O homem que está doente espiritualmente é incapaz de perceber as atividades do seu próprio interior; se transformou no o que São Paulo chama de psychikos anthropo, um ser meramente psíquico que “não percebe as coisas de Deus, porque essas precisam de discernimento espiritual”2. Este homem decaído não percebe que além da sua indiferença à inteligência, há um princípio corruptível lhe afastando do Centro. Em outras palavras, ele tornou-se incapaz de perceber que o que está operando nele através da sua indiferença é o próprio Diabo, no qual entra no que ele pensa, no que ele deseja e no que ele quer, e isso tudo com tamanha sutileza — por isso o Diabo é comparado a uma serpente —; portanto, quando o sujeito percebe que existem ideias, desejos ou pensamentos que são capazes de apagar de modo completo os seus mais profundos valores morais, é nesse exato momento que ele percebe a existência do Diabo — ele percebe que existe uma força na direção do mal que é incrivelmente poderosa.
Se pegarmos um debate onde o assunto é a validade das religiões, e há 2 participantes, um com argumentos para validar a religião e outro que diz que “é bom ter fé”, mas que “as religiões não são absolutas” e “nem Deus é como é descrito por elas”, notamos que há algo estranho no raciocínio do sujeito, isto é, existe uma constatação de fato (“é bom ter fé”), uma falsidade (“as religiões não são absolutas”) e uma perversidade (“nem Deus é como é descrito por elas”) do qual ele quer persuadir o primeiro participante; e caso o primeiro participante só escute e não exerça discernimento, ele vai sair do debate em dúvida, mesmo que demore 2, 3, 4 meses, ele vai acabar ficando em dúvida, e isso sem saber de onde elas vieram. Pois bem, é assim que o Diabo toma um povo, uma sociedade, uma civilização inteira. Afinal, não foi assim que o Diabo agiu nos pensamentos dos fariseus e dos saduceus? Eles achavam que estavam certos, e o que eles acreditavam era o correto, ao ponto de matar o próprio Jesus Cristo. Portanto, estamos numa epidemia espiritual, é este que é o mal da humanidade; por isso que, ao debatermos com alguém, precisamos lembrar dessas questões, porque somos doentes e nem totalmente racionais, estamos imbuído pelo pecado original, por essa doença, por essa erva daninha, pois não diz que “veio o inimigo [...] e semeou o joio no meio do trigo e retirou-se”3? De qualquer maneira, é evidente que o Diabo utiliza inúmeras artimanhas e instrumentos de ação contra a humanidade, mas a primeira delas é com certeza essa — Isto é, de fazer que a nossa língua seja dupla4; de que quando pensamos, pensamos duas coisas e não percebemos; de que quando falamos, falamos duas coisas e não percebemos. A corrupção da linguagem é o principal instrumento do Diabo.
O Diabo é uma potência cósmica, portanto, se o sujeito sabe e compreende o que é o Diabo, ou seja, retira o seu filtro de ignorância, a sua indiferença em relação a inteligência, e concebe as coisas tais como elas são, ele percebe que o Diabo é só um bicho chato, “uma criança mirrada de pele escura”5, como diz Santo Antão. O problema é que hoje em dia ele está possuindo a humanidade inteira, não só alguns indivíduos.
No universo, o homem possui a forma da divindade — “criado à imagem e semelhança de Deus” (Gn: 1;26) —, no qual, caso o sujeito se recuse a compreender a “essência” que infunde Ser na “forma”, o Diabo, o princípio da corrupção, irá operar nele. Porque, em suma, o Diabo não tem forma divina, mas é essencialmente intelectual, isto é, ele é um princípio que se recusa a aceitar a forma divina que é o homem; e, desse modo, se o homem recusa a realizar a sua forma divina, o Diabo — palavra essa que significa “metade de um círculo” ou “o contrário de um símbolo” — e ele irão se complementar. Em outras palavras, é basicamente a resposta cósmica do que o homem faz, e o que ele fez? Negou a própria forma divina; ele é a forma que se recusa a realizar a essência, e o Diabo se recusa a realizar a essência na forma — tornam-se um só.
Ademais, pelo fato do Diabo ser um dos aspectos — indefinidos — da inteligência divina, o diabo é incapaz de compreender a realização espiritual do homem6, porque ela implica a visão integral da inteligência divina, coisa que o Diabo não pode entender.
Há somente um Centro – “Por que me chamas bom?”, disse Cristo –, e este é Deus, o Princípio supremo.
1 Coríntios 2:14
Mateus 13:24-30
Não se fala da “língua de serpente”?
A Vida de Santo Antão, por Santo Atanásio de Alexandria.
O Diabo é essencialmente incapaz de compreender um santo.
Maravilhoso